quinta-feira, novembro 2

A Arte do Procrastinador

Como se diz para se escrever sobre aquilo que se sabe, e não me ocorre outro tema de momento, aqui vai.

O que é necessário para se ser um procrastinador bem sucedido?

1 - Motivo
É a condição que define a procrastinação enquanto acto. Normalmente diz-se que se está a procrastinar este ou aquele motivo. Por exemplo, neste preciso momento estou a procrastinar uma ficha de partículas elementares, a leitura de um jornal e um teste de ELC. Como atesta o exemplo, pode haver mais que um motivo, embora a multiplicidade de motivos requeira um procrastinador que encare a sua actividade com alguma seriedade. Repare-se também que eu não menciono coisas como arrumar a secretária, porque coisas para as quais o indivíduo se está manifestamente a cagar não constituem motivos válidos. "Podia estar a fazer algo mais útil", sim, mas isso não é procrastinar.

2 - Vontade.
Vontade sim, e não falta dela. É uma noção bastante comum e errada que procrastinar consiste em não ter vontade de trabalhar. Se assim fosse, estar de diarreia seria uma arte tal como a procrastinação. O primeiro cagalhão da Suri Cruise é arte, estar de diarreia não. Procrastinar requer vontade e um genuíno gosto por fazê-lo.

3 - Uma justificação.
A pedra basilar da procrastinação não é a evasão mas sim a translacção temporal. Não se evita uma dada tarefa - realoca-se-lhe um novo horário. A justificação é a razão pela qual essa realocação não põe em causa a (eventual) realização da tarefa - i.e. o Motivo.
A justificação não tem que ser verdadeira, ou sequer credível - "1 hora para estudar para um exame é mais do que suficiente", ou "um trabalho de semestre faz-se aí numas 5 horitas no máximo" são excelentes justificações, que já tive aliás o prazer de usar mais do que uma vez. A única condição que valida ou não uma dada justificação é o à vontade com que o utilizador se sente ao empregá-la. Isto por sua vez depende do grau de vocação e treino do procrastinador, bem como das circunstâncias particulares - por exemplo, fazer a transição de "a véspera" (comunmente adoptado pelos iniciados) para "1 hora" é um processo moroso mas exequível mediante alguma prática, e que facilmente se adequa a um exame de gestão, mas que muito dificilmente se poderá aplicar a um exame de ELC do Loureiro por mais experiente e naturalmente prendado que seja o procrastinador.

3 - Um meio.
O meio é a parte mais eclética da arte da procrastinação, e é também a que lhe confere o estatuto de arte. É essencialmente através dele que se distingue o procrastinador ocasional do calejado. A procrastinação enquanto arte gira sobretudo à volta de dois conceitos fundamentais - duração e continuidade. Um procrastinador ocasional recorre frequentemente a expedientes duma simplicidade quase infantil - ir buscar um bolo ao bar mais próximo, falar da bola do sábado com o colega do lado, ver o mail - que não possuem duração nem continuidade. Qualquer um deles chega ao fim num espaço de tempo relativamente curto (duração), e nenhum deles pode ser repetido duma maneira natural sem que tenha decorrido pelo menos várias vezes o tempo que demorou a chegar ao fim, tal como também não permitem a transição para outro meio de procrastinação duma maneira lógica e natural.
O procrastinador calejado recorrerá a técnicas mais sofisticadas e subtilmente disfarçadas, frequentemente em conjunção umas com as outras - ir buscar um livro que ficou a fotocopiar para devolver à biblioteca (e que portanto apresenta uma pressão temporal justificativa muito importante para interromper seja o que for) à reprografia que fica longe do local de trabalho mas perto duma loja de discos onde tem uma reclamação a apresentar por causa dum disco defeituoso. A proximidade de ambos suscita a oportunidade lógica de fazer um a seguir ao outro (continuidade), sendo a marca do calejo o emprego de algo importante (o prazo da biblioteca) para iniciar uma cascata de oportunidades lógicas decorrentes da ida à reprografia. De notar que após a apresentação da reclamação é relativamente fácil passar para coisas ainda menos importantes e urgentes duma maneira natural, já que "quem já aqui esteve este tempo todo, também não morre se ficar mais um pouco".
Outro método muito popular entre procrastinadores conhecedores é a procrastinação estruturada, que consiste em arranjar um super-meio (uma tarefa muito mais importante e urgente que as outras) e "procrastiná-la" fazendo outras tarefas menos importantes mas úteis de qualquer forma. Por exemplo arrumar o quarto em vez de estudar para um exame. É utilizado por procrastinadores em momentos de fraqueza que querem ou colmatar eventuais sentimentos de culpa por procastinarem (afinal de contas ainda estão a ser úteis) ou então efectivamente trabalhar, mantendo a prática a que sempre se habituaram.
Tudo isto não quer dizer que o simples seja sempre a escolha errada. A simplicidade é sempre um trunfo quando é conseguida com elegância - a atestá-lo existe uma das ferramentas mais poderosas do procrastinador, que eu designo por varinha mágica do procrastinador - o cigarro. Qualquer procrastinador sério fuma - o tremendo poder de procrastinação de algo tão simples como fumar é tão avassalador que procrastinador algum é capaz de passar sem ele. Apesar de não ser a ferramenta mais poderosa em duração ou continuidade, a conjunção das duas origina no cigarro um potencial vastamente superior a qualquer outro intrumento de procrastinação conhecido. Não possui de modo algum o tremendo potencial de duração de uma campanha de Enemy Territory ou de ajudar a montar a mobília de alguém que acabou de se mudar ou sequer de escrever isto, ou a continuidade duma pausa para jantar (qualquer coisa é possível e lógica logo após um jantar, excepto trabalhar) ou de um jogo de cartas (à melhor de 3? Não tínhamos combinado à melhor de 5? Agora estou eu a perder, quero à melhor de 7, etc), mas supera qualquer um deles na capacidade de procrastinação sustentada.
Um cigarro cria continuidade por si só - seja o que for que se esteja a fazer basta pegar no maço e tê-lo na mão durante uns segundos para transmitir uma mensagem inquestionável de "vou fumar" a nós e a todos os que nos rodeiam. Não se pode admoestar ninguém por segurar um maço e no entanto fazê-lo é selar a legitimidade de fumar um pouco depois. Este efeito é amplificado se se tratar de tabaco de enrolar - durante o processo de enrolar há uma transição extremamente suave mas quase impossível de contrariar entre o não estar a procrastinar e o estar de facto a procrastinar. Se somarmos a isto que nos sítios certos fumar não é uma tarefa exclusiva, fumar torna-se algo que não pode ser impedido por nenhum apelo razoável - afinal aqui pode-se fumar e trabalhar. Claro que em bem tendo o cigarro aceso, o procrastinador usará do direito universal a considerar um cigarro como uma pausa, completando a transição.